Compassadamente


aceito da tessitura dos deuses

o novelo do destino

e incautamente imito

as personagens já esquecidas

que sacrificaram  suas vidas

apenas para verem brilhar

uma estrela

no horizonte do céu.


E em tudo isto não há alarme nem alarde:

é como uma vazia cidade em fim de tarde

que procura

o bulício e a agitação

perdidos por um erro vão.

Espiral de silêncio


Estranha é a noite sem navios

no silêncio vago do anoitecer

quando adormeço.

Talvez por isso sinta uma tão leve tristeza

no levantar da bruma,

logo ao acordar,

cansada, ó tão cansada!,

desta caminhada.


Mas, súbito!, o Coração desperta

e a Coragem regressa

tão forte e tão presente

que já a sombra quase não se sente.

Movimento na noite


Raiará a manhã num cambiante de cor

e daquilo que é só escuridão

nascerá a luz tímida duma primeira madrugada.


Por isso, tão longa é a noite!,

quando acordada, apenas esperando a madrugada!

Já quase


chegando a um quinto andar,

as árvores resistem à força do vento,

porque sabiamente  se vergam.

Aprendo, então, com a natureza

que não há lição mais bela

do que aquela

que nos ensina a grandeza

na maior subtileza.

Mansamente


Se hoje digo liberdade,

há uma sombra que foge

para a claridade daquela outra madrugada,

mas o meu silêncio hoje já não é uma concha fechada

contra as grades, que o tempo

fez esquecer

como se jamais voltasse a acontecer.

Na orla da planície


é o Sul apenas,

muralha para a imensidão.

Por isso,

entre o sol e a sombra,

entre a curva e a lomba,

cada viajante

sonha o caminho errante

da viagem pelo mundo

nem que seja por um segundo.

Presença


Neste lugar, ao abrigo da devastação

que varre o mundo, sei de ti

no longe perfeito

da ilusão.

E, então, sonho-te exato

como que saído do molde

de um artista,

capaz de moldar uma forma que resista

à humana tibieza

de toda a minha natureza.

Perfeito


é o caminho que abre

aquele pensamento

que não é meu.

Será?, porque é só teu

e dele nada me pertence.

É como aquela outra janela

do prédio em frente,

há uma dor que se não sente,

mesmo vizinha de onde se mora.

Gateway


Fim de tarde em Lisboa,

sob os plátanos

campestres.

Tão de entardecer que amanhece

como no erguer das mais brancas e belas

estátuas gregas.

E, nesta magia, de quem na primavera confia,

entrego o rumo da minha vida

àqueles deuses errantes

e inclementes

como se no campo chão eu fosse apenas mais uma semente.



 

Um búzio


resvalando pela colina,

levado no sopro do vendaval,

lembra uma esperança pequenina

que não se quebra nunca jamais,

pois é a voz do mar longamente a me buscar.

Agora que anoitece


sonho o naufrágio nas ondas

e desconfio que na cadência do mar

adormeceria antes do dia chegar a nascer

sem ter de te perder.

Orvalho


A nobreza de uma flor

está no orvalho, que é a dor

silenciosa das plantas.

Por isso, se vejo o gotejar

entretenho-me a lembrar

que não há mais belo perfume

do que o de uma flor

sem queixume.

O pôr do sol


bate agora na minha janela

e é tão bela esta luz do entardecer

que me esqueço

do longo longo inverno

da minha escuridão

mesmo quando é pleno verão.

Novidade


Tão longínquo como aquele mar

que se esqueceu,

está o sonho de Deus

que cria os caminhos na vida.


E agora, que é o momento da despedida

do eternamente passado,

aguardo,

com uma esperança sem pecado,

pelo amanhecer daquele futuro dia,

em que humanamente se sacia

a tristeza

da humana natureza.

Que importa

a saudade morta?, 

quando, aqui à volta, tudo é só silêncio.

Mistério de viver,

dia e noite, com o meu ser.

É mais claro o céu

hoje, neste final de tarde,

porque se iluminou o meu pensamento

com a palavra «acreditar».

Venha a chuva que haverá esperança;

e ainda que seja logro

este ideal -

solto no meio do vendaval

como veleiro que procura

a Ilha Afortunada,

miragem feliz na caminhada -

irei, por certo, viver

na claridade deste infinito céu

até no dia de amanhã  me perder.

Já no largo oceano...

Que mistério há nas palavras?,

ou no pensamento?, que tornam o Céu

apenas um elemento

tão pequeno

quanto aquele ínfimo momento

do sonhar ao acordar.

Que mistério?, ou então que luz?,

é aquela que me seduz,

agora mesmo, a te procurar,

inspiração, 

para que o tempo não seja em vão.

Não sei. Tudo me parece tão ínfimo e efémero

que nem sei se espero

acordar e ver um poema a nascer.

Vertigem


O escritor dribla as palavras

na conquista de quem lê,

e o espaço de respiração e pensamento

é tal qual o momento em que

uma laranja descascada,  sem gomos,

já não é nada.

Ninho


Como um pássaro solto do ninho,

ensaias agora as tuas asas,

voarás, Caminheiro, voarás,

até para além do horizonte firme

deste monte,

que eu ainda nunca vi,

mas que sempre ao teu lado pressenti.


E então será verdade

este sonho que em mim arde

se acrescenta do teu ser em mim.

Dia


Em verde campo, são os versos

a colheita do sol que espreita por entre

as nuvens do céu.

E, então, o alimento, versos soltos no vento,

espalha-se no todo longo da encosta

como se nascessem flores

daquelas fundas dores,

calcinadas no coração,

que são afinal o teu pão.

Firme, o Tempo

quase que é já só memória...

e, na labuta dos dias,

sempre iguais,

nem mesmo a novidade

deste pardalito, poisado no parapeito

da minha janela, vem desfazer o longo novelo

da miragem do futuro.

Por isso, não me deixo alegrar

com o longo trinado do teu cantar.

Roteiro


Curva no desnível da estrada.

E procuro a seta

que indica a direção mais reta

para chegar

àquele ponto do entardecer

àquele ponto que é um dia morrer.

Ajudam os deuses

quando oferecem, às mãos da labuta

verdadeira, a recompensa merecida

pelos trabalhos desta vida.

Triste é a sombra do que é passado


Em círculos, corre agora a minha vida

como coisa esquecida

daquele mar que antes era

só anúncio de primavera.


Pudesse eu imaginar outro assombro

e o tempo voltaria de novo a cada dia

a ser o tempo perfeito

de olhar para o futuro e ver

tanta coisa sempre a crescer.

Renovação


Abres a janela e a paisagem penetra

casa adentro.

Assim, o longe e o perto se confundem

num segundo e o teu mundo é o imenso mundo.

No coração


Sabes?, Caminheiro, que a estrada

se faz percorrendo

cada caminho que nos leva sozinhos

lá aonde se levanta a aurora

e que às vezes o sol também chora.