sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Pé ante pé


Pé ante pé, aproximamo-nos do final de dezembro.

Janeiro já quase se anuncia, por isso, hoje, no retiro da A.,

o grupo formado reuniu em despedida de dois mil e onze. Talvez

a vela - a luz - evocando o Krishna homem terreno, o conhecedor

das Dores e dos Sofrimentos dos Homens, do longe promontório

tenha tido um vislumbre da ténue chama e desassombrado

perdoasse os pecados de todos do Passado.

E, então, pé ante pé,

na dança final,

cumpriu-se o espírito do Natal -

hoje e em cada Dia,

quando o Ano Novo já quase se anuncia.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

É Natal


É um Natal muito frio que faz estremecer

e engelhar as folhas do limoeiro, transplantado para

a terra gélida. Vingará? Sobreviverá? Penso mesmo que

a minha viagem neste Natal para Sul apenas procurava o

esplendor da árvore futura que será, quando o tronco se

fortalecer e os ramos se tornarem frondosos a chamar pelo

amarelo vivo cor dos frutos. Mas é Natal: nasceu o Deus menino,

e, neste Advento de preparação para a chegada, nada mais sublime

do que uma árvore plantada - santíssima relíquia, árvore crucificada.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Em Atenas


só apenas poderia ser a democracia

nos tempos de Sólon, porque só apenas

submetida a homens livres e por eles governada.



terça-feira, 22 de novembro de 2011

Ligeiramente


Ligeiramente, depois da chuva, chega o claro

da tarde já quando quase anoitece. Como numa iniciação,

fala-se do sebastianismo - clara imagem de um povo que desde

o século XVII aguarda e espera por si mesmo -; e os rostos ainda

muito frescos sorriem ante a ideia de um salvador. Contudo, nisto mesmo,

alguns ficarão a compreender melhor a pátria: misto de saudade de um passado

e de fé e confiança num futuro que sempre há de ser. Hoje, embora,

seja «ninguém».

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Photomaton


Como num trapézio, num circo, vivemos

na iminência da queda. Contrafeitos no balanço

das cordas, olhamos o abismo

dia a dia anunciado, e preparamo-nos para mergulhar

num espaço sem rede.

Em câmara lenta, photo a photo,

cada instante é fixado no cartão de memória

digital do photografo: se a meio da noite acordar,

talvez sonhe que sonha um devaneio de realidade gasta,

recuperável pesadelo psicótico

que só os loucos sonham.


domingo, 20 de novembro de 2011

Espiral


Inadvertido começo rola e se desfia

ondulando,

rola tudo desde o berço,

rola e se desfia

até quando?




quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Estória


Breve, no contexto, a estória

desenha a pessoa. É sempre assim.

A estória que cada um de si mesmo conta

diariamente mostra a natureza. E neste contar

e recontar definem-se os carateres

como personagens de um drama pitoresco,

que, como que à espera de Godot,

apenas insensivelmente aguardassem

pelo toque da campainha final.

E para que, então, ausentes do drama,

pudessem finalmente  e apenas Ser

longe da estória que noticia o quotidiano.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Novelo de lã


A meada confusa transforma-se aos poucos

num redondo novelo

com que se pesponta o painel;

nem tintas, misturadas com segredo, nem trapos,

nem latas, nem paus criam a nova imagem. O quadro surge

pois no pesponto da lã como um bordado grosseiro

que, no avesso, refunde a forma.

São assim duas as imagens: exatas e de medida igual.

Único duplo original indivisível. Arte!,

constância do ser e da vida.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Afinal


a menina recolhia caprichosamente na mica

as folhas gastas do outono espalhadas no empedrado

do passeio; afinal egipto já tem «p» de novo. Que bom!

Afinal só falta repor todas as letras apagadas

nos anos mil de civilização.




segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Volta que volta


Descer ou subir a rua.

Apanhar o comboio ou o navio.

Rever os rostos daqueles que partiram ou

desenhar a carvão as memórias quotidianas.

Pouco importa, pois, volta que volta,

a viagem, o reencontro ou a memória

luzem como uma esplanada

debruçada sobre o mar

onde, numa conversa de fim de tarde,

sem pudor se fala do início ou do fim.


domingo, 13 de novembro de 2011

Os indisciplinados


Variante nova de qualificação para países

à beira do colapso financeiro, a indisciplina aproxima-se

por vezes da atitude irreverente e questionadora daqueles que,

sendo mais jovens, têm mais arrojo e veem a realidade do presente

numa  abrangência de futuro. Não raro, os mais indisciplinados são

sérios impulsionadores de novas formas de procedimentos e obrigam,

também não raro, a que os outros, os que incutem ou os que acatam

a disciplina, se revejam a si mesmos sob uma nova perspetiva ou sob

um diferente olhar. Assumindo-se que tudo isto seja verdade,

encontro a síntese da ideia perfeita nas palavras

ouvidas a frei Fernando Ventura: é necessária uma mudança

de paradigma, a partir do eu solitário temos de construir um nós solidário.

Será esta nova consciência uma voz  indisciplinada

da razão?


sábado, 12 de novembro de 2011

Dia de São Martinho


castanhas e bom vinho! Quentes, acabadas de assar,

foram-me ontem oferecidas à porta de um supermercado,

em Lisboa, e que penso que somavam oito; tantas quanto o número

mágico do dia... E em toda esta maravilha

sonha-se um extraordinário devir,

apenas quebrado

pelo vento, pela chuva e pelo frio.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Miserere


A crise... não é económica nem financeira;

é, antes de mais, uma crise de valores.

Em Portugal,

tal como pela Europa e pelo Mundo,

hoje, a assembleia hasteou uma bandeira singela de calamidade

para quem honestamente malbarata os dias

ganhando um insuficiente sustento.

E, parca e rara, a Justiça,

no dia a dia do quotidiano das gentes,

é um simulacro

do desassossego.



quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Agora presente


No interior, o planeta movimenta-se em convulsão.

Nos céus, o alinhamento é quase perfeito.

E entre os céus e a terra, o homem,

na sua superior dualidade

de ser pensante,

vaticina a fratura

dos Tempos.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Projeção


que aguarda a espera em contagem

decrescente das Horas. O segundo primeiro

do acordar desfia o ror de tempo até ao adormecer.

Só o Universo tem as Horas

concretas

que na eternidade

se movem sem se saber.




terça-feira, 8 de novembro de 2011

Filas vazias


Tarde triste: sem história.

Nem a incursão sobre os ideais românticos,

do início do século XIX, me aliviou a estranheza

de observar as longas filas

de automóveis no Saldanha,

que apátridas, se movimentavam vazias.

É como querer compreender e não entender.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Sempre


o longe é tão longe... Manchúria! fica nesse longe;

e, no entanto, toda a história de opressão é um longe

que devia ser sempre perto.



domingo, 6 de novembro de 2011

Joeiram


estrelas aqueles que, nas cidades, e ao redor, no mundo,

pacientemente aguardam pelo levedar dos frutos

e de todas as coisas que demoram a nascer e a crescer.

Aprimorar a paciência é tal arte

que, mesmo que secas as fontes,

sempre há água p'ra beber.





sábado, 5 de novembro de 2011

Breve instantâneo


Pasmada, ao sol,

a árvore toda

enobrece

como se alma só tivesse

e não um corpo

a perecer.

Onde a raiz,

seiva dos ramos?

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Cesto de papéis


Atravessa o tempo cada folha que se rasga

e que se despeja: também na memória o deletar

apenas não é possível.

Encontro, por isso, entre todos os papéis

inexistentes, uma novela,

opereta bufa,

sem dimensão de grandeza. Espantosamente,

nem eu sei porquê, recupero

cada linha perdida de cada folha rasgada

e cruzo-me de novo com toda a história

no curso do dia a dia da  jornada.

Melhor seria apagar tudo o que É,

mas a mente engana e diz:  mais outra vez.








quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Ponto por ponto


Aguardando. Esperando.

Jazendo passivamente num enleio.

Ralanti de gestos e mais chuva que cai,

súbita e instantânea, por um momento apenas.

No território onde moro - tão distante dos picos

mais altos do planeta - ouve-se o troar de longínquos

tambores, que anunciam não sei que nova forma de guerra.

Talvez que sempre todas se iniciem assim, dominadas

pela inércia dos gestos dos que mais lucidamente pensam. 

Por isso, ponto a ponto, bordo

um desenho raríssimo:

um mundo inteiro novíssimo.







quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Purpurina


Quando o céu é de neblina densa,

e a chuva outonal se espalha arrastada pelo

vento, a natureza convida ao silêncio mais interno.

Contudo, assim não se passa. Cada vez mais alto

soa a brados o clamor... talvez que, às ilhas gregas,

Ulisses tenha regressado da aventura marítima,

ansiando pelo repouso de guerreiro.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

No jardim


dos caminhos que se bifurcam, corre, agora,

na máxima larga medida, o jogo da quietação...

A máscara de olhar no espelho, o vestido de renda,

as fivelas nos sapatos, tudo isso é despejado como lixo

indiferenciado. E quietamente, sem anseio, como quem dá

tão só e apenas um passeio, no jardim,

procuro eu e a multidão

uma saída.

Mas, o que deixa, a Vida?; nos caminhos

dos  futuros incontáveis.

domingo, 30 de outubro de 2011

Teatro de sombras


Em luz, densidade do recorte das figuras,

a sombra... e os risos silenciosos das crianças.

Teatro movente: quando Krishna, o professor, ensina

a Arjuna, na batalha decisiva, presente em cada

homem em cada dia. E assim, nas sombras, o teatro

é luz.

sábado, 29 de outubro de 2011

Dourado


fulgente. A Baixa-Chiado move-se no sentido

dos ponteiros do relógio que hoje recuam; na casa

dos gelados, a fila chega à porta, na casa do café, as

senhas obrigam à espera... Há sol e fados:

património que podemos deixar à humanidade,

como contradição

de raça e de povo.




sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Sal do mar e sal da terra


Teremos nós, hoje, a virtude do sal que salga?

Ou, como diz num passo António Vieira, estará perdida

a substância?

Sem história de futuro, não há, senão no desacerto

dos desencontros, uma ténue Verdade

na vida. E o caminho que fazemos (povo, indivíduos, nação)

transporta-nos para um mar tão de agora,

que já não há nem o sabor à maresia.

Mais pobres, pobremente ficamos

sem o sal.



quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Diáspora


Perturba-me este momento tão presente - tão vivo -;

não entendo se quero seguir por becos e vielas ou, ao invés,

caminhar por uma ampla avenida. A estrada que me leva à capital

leva-me também à vida, mas perturba-me

o medo, a dor, a exigência.

Quebra-se o sonho: toma-se só a realidade:

vive-se e o que se vive é a existência,

não a sonhada, sempre adiada num futuro,

mas aquela que sendo real, se veste

das chãs cores da realidade.


Perturba-me este momento tão presente - tão vivo -;

queria, antes, refugiar-me toda no sonho e

nele adormecer para sempre sem ter de viver

nem ter de esquecer!


quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Resposta


Vacuidade de saber. De todo, não me interessa

conhecer. Filme já revisto e sem história.

A cada gota de chuva, as fachadas dos prédios

se lavam e lavadas guardam as nossas casas;

último reduto do ser, primeiríssima memória

do ter.

E nos pensamentos que se cruzam, as mensagens

instantâneas deixam um rasto

de devastação - sem qualidade, a palavra

é uma mera confrontação.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Simplesmente


há uma coisa que atravessa a nossa existência -

a existência de todo e de cada um - ; chama-se

liberdade. Ser livre é acima de tudo ser responsável,

ser adulto, ser emancipado. Por isso, tanto me espanta

aqueles que observo como imberbes, quando a idade deveria

patentear uma natureza e um saber de gente crescida. E são

tantos!, meu Deus, são tantos! Tantos que estão presos a uma

pseudointelectualidade bacoca e vaga de imitação. Justamente,

o exercício de liberdade exige a originalidade: que mais não seja

tomando um café numa esplanada, no meio da avenida, desperto

para tudo aquilo que é essencial na vida. E como num jogo de xadrez,

copiar a jogada - registada no livro - não é o mesmo que pensá-la:

também na vida há tantas vidas iguais que se repetem, mas cada um

deve, no ímpeto do deslumbramento daquilo que é novo, mover-se

a partir do centro interno e original do seu ser. A isto chama-se ser

livre - totalmente livre - para além da natureza da prisão

que sempre nos condiciona.

domingo, 23 de outubro de 2011

Adeus


Será, é, Adeus... sem mais senão Adeus.

E no instante em que penso Adeus, o futuro

acontece. O presente é novo porque não se enraíza

na crença do passado. E já nem penso, digo, alto, Adeus.

E tudo à minha volta se deslumbra neste meu pensamento e

na minha voz. Adeus! solenemente, Adeus! e as calçadas que

amanhã de manhã pisarei em Lisboa, nos seus desenhos de

arabescos e caravelas, florescerão como num eco vivo de pedra

e acenarão, com os seus desenhos, Adeus!

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Mergulhar



Há seres que movimentam em nós um

sentimento de equilíbrio. Perto deles, sentimos

uma fonte de energia revigorada - e até, na adversidade,

se colhe a força. (O contrário também é verdadeiro).

Por isso, quando no caminho se proporciona

uma escolha, a opção deve abarcar esta abrangência

de vibração imperceptível. Não é possível mergulhar,

se não se puder respirar.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Emergente


é a necessidade de mudar o acordar...

Se cada um despertasse lucidamente do sonho,

nas primeiras horas da manhã, em um e outro dia

tudo mudaria. Por mim, à minha parte, irei movimentar

a Vida; erguer-me-ei na madrugada

e olharei com firmeza a larga estrada,

e, porque da minha janela vejo

uma nesga de mar e a serra,

qualquer epopeia que escreva

será cativa

da verdade desta realidade, mesmo que a imaginação

teime em me erguer do chão.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Up and down


Viver momento a momento

é um estreito movimento que como

um iô-iô avança: up and down  sobe

e desce a esperança.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Passagem



Tão volátil é o verão,

como qualquer outra estação.

Também no Tempo do mundo,

cada Era não dura senão um segundo;

e os anos mil, que se fecham agora,

abrem e descobrem uma nova aurora.

Será o novo Signo promissor ou o Homem

não crescerá em valor?

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A Memória


é a tristeza que não custa. É aquela que está

tão presente nos momentos da lembrança e da

evocação. À memória chama-se, em português,

saudade.
Confiança


em quê? Confiança de que no movimento

justo e rigoroso do Universo há um sentido abrangente

que na inteligência do Cosmos desenha o sonho de Deus.

Confiança, sim! Não nos homens, mas nos Céus.

domingo, 16 de outubro de 2011

Andanças


Daqui para ali. É um movimento decerto,

mas, quando se pára para escutar,

tão é o longe quanto é o perto... e esta

deveria ser a atitude de cada um:

estar atento ao que está longe e ao que

está perto.



A Vida é Bela


No Natal, o meu filho ofereceu-me um voucher

da Vida é Bela. Não o usei ainda; nem sei porquê.

Mas, olhando para a caixa, observo nela a utopia de

mais do que uma geração do pós-guerra na Europa.

A par com o sonho da sociedade fraterna e justa do

socialismo, nas democracias do Ocidente, venceu o mito

da vida é bela. Ou seja, cada um, a seu nível, e na sua

classe social, esperava alcançar gratuitamente e sem

esforço as benesses de um estado social protetor, que,

como um pai, oferecesse tudo quanto se entendesse

como necessário: os cuidados de saúde, a escola,

a reforma, etecetera. Para muitos destes homens e

mulheres ateus, alguém cuidava, alguém provia,

alguém protegia. E, afinal, hoje, o voucher do bem-estar

e da felicidade voltou a estar inteiramente nas mãos

individuais de cada ser: o que eu faço e não o que me é dado

é que marca a diferença entre os homens.


El Indignado


é o paradigma do Homem de um certo tempo

do presente que leu a Carta dos Direitos Humanos.

Contudo, este Indignado das grandes metrópoles e dos ditos

países civilizados, está tão somente na esfera de reivindicação

do direito ao trabalho, da equidade de uma certa justiça económica

na distribuição da riqueza, e da honestidade do governo político. É já

muito, sem dúvida, quando em oitenta e três países do mundo, à mesma

hora, e no mesmo dia, o Indignado se levanta e marcha. Mas, acredito, que

a indignação tem de ir mais fundo: tem de descer à raiz da natureza humana,

que apenas faz erguer a voz em protesto, quando a injustiça diretamente nos atinge.

Para alcançar um verdadeiro propósito universal: el indignado tem de saber

exprimir-se em solidariedade com os outros, independentemente

do jugo social, político, económico, religioso. E, sim,

sairei à rua também quando o balizamento

tiver esta abrangência. Quando el indignado protestar

que o mundo está construído à imagem da nossa

- de cada um -

indiferença e egoísmo humanos.

sábado, 15 de outubro de 2011

Dormência, afinal


Traço distintivo do ser, o adormecer

e esquecer... raramente quem sonha vê para além

da vidraça da telenovela que passa

no teatro da vida.

E se a sina é ditosa, mais triste

será a prosa, porque

um verdadeiro romance, de verdade,

tem uma elegia épica que arde

e que obriga

ao pensamento, transformando o dia a dia

a cada momento.

Mas, quando a dormência é tal, afinal,

não há senão prisão  sem mote

para uma saga construir e uma gesta descobrir.
Pensativo cigarro


Desfaz-se o fumo como coisa imaterial...

Desliza dos meus dedos um último pensativo

cigarro. Abandono à distância do que é, agora,

passado: um outro tempo! ido!

E o presente? Que linha é esta, que percorre

o espaço, sem movimento de futuro? A pátria

apaga-se também no mesmo cinzeiro onde pouso

este derradeiro cigarro e as cinzas engolem o último

morrão de luz. Ninguém acredita que uma contração

económica salve. Ninguém acredita que o empobrecimento

e o retrocesso sejam a solução. Tal como cada um dos

cigarros que, durante anos acendi, nunca me devolveram a

esperança de nada. Eram, apenas, pensativos cigarros!, e,

nesta Hora, tal e qualmente, está apenas pensativa a nação,

sem a ação heróica de ser.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O lápis


Hoje, justamente, em cima da minha secretária,

encontrava-se um lápis pronto e afiado. E digo

justamente, porque, hoje, também, precisei de comprar

uma lapiseira nova e levei de casa um lápis por afiar,

já que a minha velha lapiseira se estragou... Afinal,

o bastante, o necessário, sempre aguarda por nós

tão serenamente quanto um lápis de carvão preparado

para desenhar firme nos interstícios de tanta sombra.
Mergulho em nós mesmos


É um desafio não ocultarmos a Verdade. Isto

é sempre o mais difícil, sobretudo, quando essa Verdade

requer a nós mesmos um confronto exato e rigoroso.

O que sei de mim? O que sabemos de nós? De que inteireza

se reveste a nossa autenticidade? Hoje, num difícil acordar,

procurei olhar para a realidade envolvente: social, política e

económica - e a partir daí ver a Verdade de mim. Não foi

complicado, o registo feito pela C., que agora adorna o meu

quarto, recorda-me diariamente, ao despertar, que a vida

não é um caminho fácil, mas que alguns,

sabiamente, conseguem reverter, como por um milagre

humano, as asperezas do quotidiano, vivendo

com dignidade. E viver com dignidade é ser autossuficiente.

E isto que é a Verdade para mim é, de igual modo,

a Verdade para as nações e para os estados... Por isso,

se fosse possível, ofereceria à nação o exemplo de memória

que guardo de todos aqueles que sem a Sorte,

viveram uma grandeza de vitória.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Aqui e agora


O momento atual é de molde a pôr

em prática todos os exercícios sobre

como viver inteiramente no instante presente.

Sem vislumbre de futuro, só o aqui e agora importa.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Silêncio tão contrário


Porque foram repetidas as palavras mais íntimas

da J.? Será sempre este o movimento dos seres? Necessidade

aguda de dizer: o príncipe tem orelhas de burro! Necessidade

humana. Necessidade básica. Quando sentiremos pudor

de usar as palavras?


terça-feira, 11 de outubro de 2011

Tarde


Desidrato de não saber.

Antes melhor pousar a loiça lavada

num alpendre luminoso, que andar na sombra

com cacos de tanta coisa quebrada.

Reconstruir. Refazer. Recriar. Este «re» que prefixa

a vontade quase adormecido! Por isso,

nem sei se me quero mover em outros novos caminhos;

antes melhor pousar-me como a loiça

e ficar inerte, esperando que o vidrado estale,

e que o rendilhado mostre

um envelhecimento solene.


segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Noite


Na noite, o trânsito ilumina as ruas

e assinala os caminhos... Cada vez mais,

precisamos destes faróis por entre a escuridão

que nos envolve. Porque não há entre os homens

tão só um que ilumine também? Estranha humana condição que

não encontra em cada ser uma vela ardente que, como

um automóvel, propulsione uma  luz incandescente

que marque um direito rumo e uma certa estrada.

domingo, 9 de outubro de 2011

Towards zero


Quem neste instante caminha inconscientemente

para um mesmo singular ponto?

Espaço e Tempo convergindo humanamente

sem que se perceba o movimento.

É isto o inexorável destino? Fio de areia escorrendo

para o limite futuro.

sábado, 8 de outubro de 2011

Simples outonal



Percebe-se que é outono, porque as folhas

quebradas e castanhas tombam à volta no chão

nos caminhos. Sinal de que a Natureza conhece o

Ciclo e o Tempo; sinal de que não se confundem as

Estações, nem mesmo quando para o Homem corre

o verão fora de época. Pisando as folhas tão secas,

vejo claro, em paralelo com as árvores, que é

preciso saber em que Estação

corre a nossa humana vida.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Imperioso


é, definir uma clara linha atuante nova...

E isto faz-me recordar um poema escrito por mim,

quando ainda era adolescente, qualquer coisa como

«sei as Horas loucas a rirem-se», de mim, diria neste instante

de novo. O Tempo, as Horas, sempre presentes

ao longo da minha vida, e sempre um igual sentimento

de que algo inerte prepondera e que o curso

de cada dia me desvia do centro mais interno de ser.

Mas, como bem sabem as Horas,

a inteira e única responsável sou Eu.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Esquecimento...porquê?


Esqueci-me... mesmo, do feriado de ontem;

pareceu-me antes um deslumbrante dia oferecido

para pertencer a mim mesma e para eu, de mim a mim, unicamente

dar fé. Foi excelente - a meio de uma semana de trabalho -

há não sei quantos anos (mais de cem) ter sido implantada a

república. Mas porque me esqueci? (Ou melhor, quem, para além

dos dignatários envolvidos em cerimónias oficiais, se lembrou?).

Esquecemo-nos, porque, num regime dito democrático,

que diferença pode haver entre uma

monarquia ou uma república?! Além do mais, apenas uma família

real acaba por ficar muito mais em conta do que as já extensas listas

de presidentes, vice-presidentes, ex-presidentes, e respetivas

famílias que a dita república tem de custear. Apenas encontro

uma nota de evocação positiva: a belíssima imagem da República,

de bandeira desfraldada na mão, abrindo o caminho

da Liberdade... Mas a imagem desta Mulher, hoje,

desapareceu por completo, como se também a

Liberdade fosse tão difícil de encontrar quanto

comer um cacho de uvas brancas, pequeninas. 


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Sincronicidade


Hoje, depois de ontem, tive a aventura

da sincronicidade presente numa aula sobre

a origem do mundo. O universo cindido, tal como

a R. o interpretou. E regressa a mim a ideia do plural

único de dois - matéria filosófica, mas também pragmática

da vida. E a ciência? «Pesa tanto e a vida é tão breve»,

como diz Pessoa. Por isso, não mais neste dia quero pensar:

irei antes mergulhar no inusitado verão,

já outono que é, e aprender a dar à luz

a mim mesma - se entretanto nascer,

verei um céu dual.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Dual


Ambas - duas - 

antecede o infinito...

Cada supernova que brilha no cosmos

é apenas um ponto - mais de dois pontos

é um movimento nos céus...

O anúncio da atribuição do prémio Nobel da Física,

deste ano, faz-me mergulhar na perplexidade da ideia de

um universo que, podendo ter tido um início, poderá nunca

ter um fim - sendo dual, seria mais simples.













segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Verde Maçã


Percorrer a avenida ao desabrigo do encontro

com alguém, é o destino atual de tantos no percurso

de cada dia. Solitariamente, também, no paraíso, Eva

provou a maçã - quem sabe que sorte não adviria para

a humanidade, se, ao invés, em franco concílio, a proposta

da serpente tivesse sido debatida e ponderadas as consequências.

Parece, enfim, que o fatum do homem é ser só, desde o instante

primeiro da idade de oiro; para o Bem e

para o Mal -está o homem  irremediavelmente só - , mesmo

se integrado numa rede social. E a rede, seja a família

sejam os amigos na net, não estará atuante

quando a emergência de decidir ocorrer.

«Como a maçã ou não?», terá seguramente Eva pensado

para consigo mesma, mas, como sempre sucede com

as verdadeiras experiências, absolutas, que são

intransmissíveis, só a ela podia caber a decisão

e a prova. Sempre que tal acontece, não há rua,

nem avenida, nem praça, onde

não estejamos senão tão inteiramente sós

quanto Eva

pecando pela primeira vez. Destino primeiro

do homem, mas também último e derradeiro.




domingo, 2 de outubro de 2011

Cegueira


«de que maneira pode um livro ser infinito?»,

pergunta Borges.

Respondo: se qualquer outrem, no devir dos séculos,

sempre lhe acrescentar novas palavras... e,

quando esgotado o Tempo,

nele escreverem os anjos do Céu. E assim,

neste movimento de quem escreve e de quem lê,

passa a Vida num momento,

sonho breve que É.


sábado, 1 de outubro de 2011

Vítrio
 em memória da Carina


De vidro, transparente, as plantas dos pés

firmam-se no chão. É uma inteireza de frescura

que se colhe como se numa onda após outra mergulhassem.

Depois, vislumbrei ao longe o Tejo, e não era vítrio

o meu olhar, porque toquei, também hoje,

o absoluto do silêncio completo e inamovível,

e desejei que fossem de vidro

todas as pessoas.



sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Déjà vu


Dulcílima luz. Fragmento de quadro

inacabado. Chá e doce e pão sobre a mesa.

Inquisição. E, agora, a sequência toda se repete:

fragmento de luz; dulcílimo quadro inacabado; inquisição.

Construção perfeita da mandala: linha repetida, igual.

Paragem no Tempo que É. Algo se ajusta na exatidão

geométrica do meu ser - que arquitetura se projeta de mim

para além de mim - de dentro para fora? de fora para dentro?

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Eventos


Que idêntica, de verdade, a massa humana

das roulotes de bifanas e de churros, em frente ao

Estádio José Alvalade, e o grupo de elite no lançamento

do livro de um cirurgião estético no Palácio Sotto Mayor.

Eu, outsider, como em quase tudo na vida, beberiquei um

fresco sumo de papaia, no Palácio, e só tenho pena de não

ter comido um churro, em frente ao Estádio. Mas, penso, e isso

dá-me descanso, que, enquanto houver jogos de futebol de casa

cheia, e eventos sociais para vender revistas cor-de-rosa, o

mundo não terá ainda colapsado, de forma completa, financeiramente.

Sim. A máquina pode girar perra e desequilibrada e injustamente, mas,

de algum modo, «e pur si muove».

Para quem vive do salário do trabalho, sempre é uma garantia do Universo,

quase tão importante quanto uma lei cósmica.


quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Momentaneamente


Imprecisas e instantâneas, as palavras ouvidas;

intenso e sufocante, o calor na tarde...

O suficiente para que a minha mente se

desagregasse e para que nem as janelas abertas

trouxessem de volta o lesto movimento do pensar.

Momentaneamente senti-me a outra - aquela de mente

vazia e oca. Por isso, frame a frame recompuz os pedaços do dia,

e recortei, de um velho magazine de moda,

as letras para construir um título apenas:

maceração.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Sombra


Que onde ser, sem uma sombra

se mover a nos perder?

O fim da tarde pedia um sorriso,

franco, limpo, rijo, mas aquela sombra

que pela minha mente dardejou

eclipsou dos lábios todo o movimento.

É até natural: quando simplesmente se descrê,

não há memória de vitória.












segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Os herdeiros


... são aqueles que dão continuidade

ao que quer que seja que lhes for confiado.

A nursery rhyme foi o tesouro que hoje herdei:

que saudades das crianças futuras

que saberão estas linhas 

tão bem como se um piano de cauda

as acompanhasse no compasso - o Sol e a Lua

distante deram um abraço!...






domingo, 25 de setembro de 2011

Volver


Quando a urgência de mudar é premente,

caem pingos de chuva... escorrem para o mar,

melhor dizendo, para além. E nesse além, não há

pensamentos feitos do palavrear que toda a mente

contém. Quando de hoje passarem dez anos, cada gota

será rigorosamente outra, diversa de agora, e talvez, como

num rio, venha a encontrar nos acidentes do terreno apenas o curso

monótono do serpentear.

Uma gota, um rio, um mar, não fazem diferença num

lúcido olhar.


sábado, 24 de setembro de 2011

E depois do Adeus


Observo que a minha entrada no Liceu (como na altura se chamava)

teve a marca casuística do vinte e cinco de Abril de 74. Entrei após

Abril, num outubro, que se despedia do verão, como naquela época

sempre sucedia. Estava um tempo outonal, estou certa, e a ida para

o Liceu preparava-me para o amadurecimento na vida. Ontem, no

desnorte dos caminhos percorridos, passei-lhe à porta de entrada,

e pude observar que é hoje uma Escola moderna, sem o movimento

de impetuosidade e indisciplina revolucionária daqueles tempos. As

aulas, no seu modelo tradicional, quase tinham sido suprimidas e os

professores, que de algum modo lecionavam, faziam-no num modelo

inovador - que ainda hoje não sei avaliar se teve alguma eficácia.

O que posso dizer é que o que aprendi, nessa época, no Liceu, foi,

sobretudo, o respeito democrático pelo outro, a reivindicação

legítima perante injustiças, o sentido crítico em face de diferentes

modelos de sociedade, a importância da luta coletiva, a discussão

intelectual em torno de questões emergentes. O que perdi a nível

dos saberes atomistas e enciclopédicos, ganhei a nível de uma

dimensão humanista e crítica; e, tudo isso devo a uma canção (E

depois do Adeus) que foi o sinal primeiro com o qual se iniciou

uma revolução sem disparos nem sangue.

E, hoje, e depois do Adeus, de ontem, a todo esse passado, observo

que, com a morte do autor da letra da canção, definitivamente se

encerrou um ciclo de existência. Todo esse tempo (toda essa década)

mergulhou definitivamente naquilo que é História. E esse passado,

a que sem dúvida regressarei muitas e muitas vezes, está agora, sem a

emoção, reduzido a factos de reminiscência analítica; uma espécie de

narrativa em que, simultaneamente, sou o observado e o observador.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

ROTAS


Caminhos desviados... trânsito parado...

luzes vermelhas até perder de vista... O incêndio

obriga a mudar a rota programada: mistério sempre

das pequenas coisas - neste simples percurso caótico revisitei

esses agora distantes lugares, que já foram estrada da minha vida.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Alguém chama...


... por mim. Eu não estou. E essa ausência

é quase costumaz. Tenho o hábito de não estar,

quando me chamam. Um terrível hábito de estar ausente,

mesmo quando uma forte intuição me incita a permanecer.

Às vezes, tocam campainhas no meu cérebro: vontade de telefonar,

vontade de ir... mas raramente obedeço. Como hoje à sessão do

centenário de dois escritores, na Sociedade Portuguesa de Autores,

a que não fui. Em vez disso, estive enredada numas palavras da Marguerite

Yourcenar, no «Último Amor do Príncipe Genghi». Reconheço, em mim, um sentido

de desobediência quase infantil. «Porque fazes isso?», «Porque quero.»,

«E, porque queres?», «Porque sim.».

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Diversamente nuovo


Fiat! Sim. Ser diferente, ser outro,

mas continuando a ser o mesmo. Ir ao encontro

da integridade mais interna; e, diversamente, procurar

a transformação. No caudal amplo da magna existência,

ser como a corrente sadia que se move, mas que se reconhece

na natureza líquida e translúcida. E assim, no versátil movimento

afirmativo da mudança,

se traduzirá a imutabilidade de cada  Ser.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Pandora


Há vários dias sem ver televisão e não lhe sinto a falta.

Não sei o que se passa ao redor, mas acredito que esteja

tudo igual. Longe vão os tempos em que a programação semanal

era variada e tinha alguma qualidade recreativa e cultural e a digressão

pelo país e pelo mundo noticiava acontecimentos que eram elucidativos

de diferentes modos de ser e de estar. Hoje, à conta dos

canais temáticos, tudo se esgota. Quem tem paciência para ver horas

de policiais, de humor, de música, de desporto, de documentários, de notícias,

de filmes...? E, nos canais generalistas, quem suporta telenovelas, concursos,

entrevistas, protagonizadas por figuras ocas de capas de revista? A caixa que mudou

o mundo perdeu a inteligência e a lucidez num afã concorrencial - e perante

isto, concluo: agradar à maioria nunca é bom sinal. Pensamento elitista? Talvez.

Mas, hoje, gostaria de deslumbrar o olhar num episódio de uma série

inglesa de qualidade ou de mergulhar na profundidade de uma entrevista

conduzida por um verdadeiro comunicador. Hoje, gostaria que a caixa não formatasse

no mau e no medíocre e que, ao contrário, elevasse no sentido da diversidade e

da qualidade humana. Mas a caixa, hoje, é apenas uma caixa. O que se pode

esperar de uma caixa? A melhor recordação que tenho de uma  é de quando

aí guardava os bichos da seda, que alimentava com folhas de amoreira,

esperando pela metamorfose.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Divergências


Tic-tac... tic-tac...

para onde vais, Tempo,

para onde escorres?

Tic-tac... tic.tac...

que gruta é esta, 

onde te moves?

- Cinzelo, no brilho da luz,

os cristais; e, na gruta, escura,

me movo, como Mostrengo perdido,

pobre, e sempre esquecido.






domingo, 18 de setembro de 2011

No Sul


No Sul, move-se o tempo amplamente

em socalcos, a lembrar as curvas das encostas

do Douro, como caminho feito a pisar bagos de uvas.

E desse vermelho sangue escuro escorrem, gota a gota,

dardejando, os segundos... e há sol no tempo... e há mais vida.

Hei de mover-me um dia para Sul, tão a Sul que

não encontrarei bússola

nem satélites...

crente e sábio,  só o Tempo aí estará.




sábado, 17 de setembro de 2011

Sob os séculos


O livro «Sermão para o meu sucessor», do Marquês da Fronteira,

idealiza e transmite ideias e valores, entre outros aspetos, sobre a defesa do património.

Num dia que dediquei em visita aos Jardins do Palácio dos Marqueses da

Fronteira e à travessia do Aqueduto das Águas Livres, parece-me bem

evocar tal sermão que, com denodado brio, postula os valores da ética,

da nobreza, da honra e da dignidade humanas. Se me ocorresse

escrever, hoje, um sermão, postularia o princípio magno

da preservação da herança patrimonial, seja ela qual for,

uma nação, um palácio, uma simples casa... porque inteiramente

também no cosmos, numa ordenação exata, cada coisa

se mantém na medida conforme aos éons do tempo.

No cosmos, o balizamento é, aos nossos olhos, o de uma certa eternidade,

tal como, belamente, traduzida, nos Jardins do Palácio, que hoje visitei, nos

luminosos painéis de azulejos e no recorte geométrico de áleas e

arbustos. Disseram-nos «é um jardim para observar e não

um jardim para passear», e, justamente, seria este o argumento único

e o exemplo de matéria que utilizaria no sermão ao meu sucessor, que hoje

afinal não escrevi.




sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Ab-inicio


São rumos novos de vida, o que encontro em cada início

de ano letivo. Rosto a rosto, sei de  novos seres, de que

desconhecia a existência, e quero sempre acreditar que são

ávidos pelo saber e pela descoberta. Trabalhar com as palavras tem

o seu quê de sedutor e permite explorar os limites indefinidos das ideias

e os contornos intemporais do Homem. Agradeço à Vida esta

minha forma de existência: às vezes sinto-me quase nómada,

nesta deriva de chegadas e partidas, daqueles que vêm ao

meu encontro; mas é  bela esta fugaz presença

atravessada pela arte e pelo pensamento.

E, agora, nas amplas salas, de portas todas viradas para os dois pátios,

onde os plátanos e as tílias adormecem no correr das horas da tarde,

embalados pela cadência melancólica do Verbo de quem ainda soletra

tibiamente os sentidos, há um movimento de vida,

um início novo, riscado na ardósia escura.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O outro lado


Se tudo fosse diferente, seria apenas diferente.

Alice, visitando outros universos, redescobre também

neles o nonsense e o absurdo. Tão reais como não saber

medir a pressão dos pneus de um automóvel ou como

magicamente encolher para passar por uma porta minúscula.

Por isso, se tudo fosse diferente, seria apenas diferente.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Noite


É agora noite, é passado o entardecer, e neste

desvanecimento da luz, há um silêncio que é um convite

à memória. Revisito o dia ao contrário, e no acordar

vislumbro a aurora, que grácil e esguia,

traz a cada manhã de cada vida

simples novo desafio. E é assim verdade que o fogo

que sempre arde permanece... lá distante no céu.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Tempo de sezões


Está um tempo de sezões, é um dito que me ocorre

regularmente, quando o calor é tanto que o corpo parece

explodir numa febre intervalada. E nem sei se é porque o calor

aperta, agora, em setembro, se é porque, no correr diário da vida,

uma febre alucina e mata a esperança e o entendimento.

A Europa... que Europa? que nações, que povos, e que gentes? que

tratados, que políticas, que finanças? É um tempo de sezões.

Tudo está intermitente.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Violetas


Tão campestres, as violetas,

alegram na cidade os jardins,

e quem passa vive a  graça

por um instante sem fim.


O movimento é tão simples,

e a cor violeta é tão bela,

que muda a tristeza daquela

daquela flor presa em mim.


domingo, 11 de setembro de 2011

Lentamente


Lento caminhar.

Perplexidade ante tanta coisa inexplicável.

Estranho o silêncio,

quando as vozes em torno

não falam a linguagem lesta da verdade.

Por isso, afago com a minha mão o capô dos carros

e deixo que esta mecânica de chapas e de ferros

que se movimenta, estrugindo em todas as direções,

me sossegue. Eia! Hup-lá! Ei!

Para além, que além?! Que quotidiano é este, vergado

em cada portagem das autoestradas e em cada coisa

eletrónica? Que além, mais que ontem, súbito desassossego?

Eia...Eia...Ei!!! O sorvedouro dos carros e das motos e dos

grandes camiões de luzes ligadas

comanda dia a dia o caminho das jornadas!!!

sábado, 10 de setembro de 2011

Sal de prata


O registo ocorre quando a luz fixa


nos sais de prata a imagem, por isso, se passadas


décadas, uma incandescência circular se desenha no


papel, a imagem completamente desaparece como dissolvida 

pela matéria luminosa. Isto também ocorre do mesmo modo


no quotidiano das nossas vidas. Com os anos, aprendemos 


a apagar registos, mas, em vez de o fazermos abruptamente, 


com um moderno delete, melhor é que recorramos à técnica


antiga da fotografia - não só todo o processo se torna


luminoso, como, sendo mais lento, não cria 

descontinuidades nem ruturas. É apenas 

algo que naturalmente acontece, como se um mar


e uma estrela incandescente criassem, lentamente, não na sombra,


mas na luz, um trilho novo.



sexta-feira, 9 de setembro de 2011

As pequenas coisas


... dão a vitalidade ao nosso quotidiano

e, de tal maneira nos cercam, que nem quase

damos por elas: o Sol que sempre brilha, a chuva

que sempre cai, a Terra que gira no seu eixo e que

se move em torno no espaço, a Lua que influencia as

marés,  o infinitamente pequeno que na invisibilidade nos

sustenta do mesmo modo que o infinitamente grande.

Por isso, ponho de lado todas as canseiras - enquanto houver

a beleza das estações e todo este estranho movimento dos céus,

direi apenas, para comigo, muito baixinho: tudo está certo

tal como É, pois a fonte que dá vida

é a bela natureza.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Dança das cadeiras


O que da vida real terá dado origem a este jogo

tradicional? A filosofia do jogo é que alguém fica de fora,

sem cadeira, porque os outros, mais lestos e mais expeditos,

se conseguem sentar primeiro. Ou seja, há sempre uma cadeira

a menos em relação ao número de pessoas. As cadeiras que são

colocadas em jogo não chegam para todos. E é até legítimo o

empurrão e o puxão para ficar com uma cadeira. Hoje, mais do que

antes, faltam cada vez mais cadeiras e as estratégias para alcançar uma

são também cada vez menos lícitas - isto se passa em quase tudo na vida,

mas é mais premente nas empresas e nos locais de trabalho. Vai-se

perdendo o espírito de entreajuda entre pares e até entre amigos

e olha-se firmemente apenas para a cadeira que resta e na

qual a pessoa se quer sentar independentemente de

tudo o mais. Mal de um tempo? Mal do Homem? Talvez de ambas

as coisas. Mas quem, de entre tudo aquilo que a Vida

quotidianamente nos oferece, não fixa senão o estranho jogo,

só pode ser para sempre desafortunado,

embora numa cadeira sentado.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Dia claro


Bem é que o azul do céu mostre a claridade

do dia e que anuncie tempos de esperança... Assim espero.

Talvez que hoje, quando pisar o chão de Lisboa, e entrar no

edifício centenário, sinta que, por entre as sombras daquele espaço que,

antes de mim, tantos outros percorreram, ali pertenço e ali se

encontra uma parte da minha vida.

Por isso, são tão necessários o azul, a claridade, a luz, para que

penetrem na densidade dos plátanos - altas montanhas.

Talvez que, no coração, estas árvores

tenham mil anos, colhendo o saber por entre cada porta entreaberta,

que deixa correr para os pátios um gotejar

de seiva.


terça-feira, 6 de setembro de 2011

Tempus fugit


Apólogo dialogal.

Primeiro Homem: - Não é possível fechar a porta...

Segundo Homem: - Seguramente não.

O Relógio: - Por toda a porta aberta, voa o tempo e a razão.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Curso em Milagres

Vem-me à memória, súbita e agreste, o tempo da juventude

passado numa aldeia em terras alentejanas; e nesse tempo, ora tão remoto,

ora tão presente, também eu fiz o meu curso em milagres, tendo como

mestras a avó R. e a avó H.. À casa - que agora é minha - acorriam as gentes

todas da aldeia, porque tinham um achaque ou uma ferida, que demorava a passar,

porque uma criança tinha nascido e era necessário protegê-la, encomendando-a à

Lua, porque um objecto tinha desaparecido e não se conseguia encontrar. À avó R.

cabia o papel matricial e fecundador de dar voz às imensas ladaínhas com que preservava

dos males e desviava os perigos e à avó H. (com uma postura moderna mais civilizada, de quem

viveu nas cidades e contactou com pessoas cultas) cabia a receita de uma pomada ou de

um medicamento para aliviar um mal-estar ou de um conselho inteligente sobre como resolver

uma situação. Assim amparadas, as gentes só podiam ver todos os seus problemas

resolvidos: aonde não chegava o milagre acudia a ciência. E eu - tal como agora evocando

tais memórias - assistia maravilhada e sempre atenta aos gestos e às palavras

de ambas (mãe e filha, minhas avós) que me revelavam um outro lado da vida,

mais denso, mais misterioso, mais subtil,

aquele que eu não podia aprender em livros de escola nem em catequeses.

Por isso, agora, na casa, deixei amplo e livre o espaço onde as minhas avós faziam

os milagres, figurando apenas uma taça de estanho em cima de uma mesa, simbolicamente

pronta a receber qualquer inconcebível  prodígio.

domingo, 4 de setembro de 2011

A Perfeição

O rasgo literário está presente, quando de um conjunto

de palavras emerge a poesia. Não há grande escritor em que isso

não aconteça - e justamente é num articulado em prosa que esse feito

é mais relevante. Sem a musicalidade poética não há trecho literário, embora

os domínios daquilo a que chamamos literatura sejam vastos e vários. Um bom

exemplo disto mesmo é o conto «A Perfeição» de Eça de Queirós. O grande

escritor encontra, por exemplo, nesta narrativa, o equilíbrio perfeito entre

a cadência melódica das palavras e das frases e o seu significado. A harmonia

é tão perfeita que o título do conto enuncia um paradoxo de conteúdo:

ao mesmo tempo que Ulisses, o Homem, rejeita a perfeição da imortalidade

presente na vida dos deuses, que lhe é oferecida por Calipso,

o autor encontra na perfeita união do significante e significado

das palavras o timbre que ecoa e alude ao mistério

da eternidade de cada momento. E isto eu experimentei, quando, nos últimos

dois dias, vagarosamente, reli esta história. Imperfeitamente soletrando,

na minha mortal condição humana, saboreei dos deuses o néctar

como sentada numa rocha, rodeada de um mar muito azul,

silente e eternamente suave.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011


Deriva


De partida para Évora,

deixo a serra e o nevoeiro e mergulho

no terreno da planície. Não terei, ao longe, o mar

nem as escarpas que encimam o Palácio altaneiro.

Mas, agora, é setembro ... e talvez que na colheita da Vida

haja bagos de uva

a lembrarem  mosto.





quarta-feira, 31 de agosto de 2011



A ilha era...


Encontrar coerência na vida de um ser humano

é algo extraordinário. Tão extraordinário que parece

dar sentido a um mundo, onde há guerra, tortura, barbárie.

Observar num percurso de vida a fidelidade a uma

natureza singular é tão raro que sinto como um privilégio esta

oportunidade de ver. Gostaria tão simplesmente de poder ofertar a este ser

o oiro das neblinas - e, talvez, de algum modo,

num entendimento subtil,

isso seja possível.

Hoje, como no passado,

este exemplo é para mim uma inspiração

para o dia de cada dia, e, absolutamente, acredito,

não mais a ilha será só.

terça-feira, 30 de agosto de 2011



Hipoteticamente


Talvez... sejas tu... Mas que importa

ter-te, talvez, encontrado? A vaga imagem

apenas presentifica o cunho da existência, somente

partilhada no desafio de vivermos sempre num mesmo Tempo e

num mesmo Espaço. Para além disso, talvez que o olvido

aconselhe a não efabular na distância de tantas milhas

de horas e dias de desconhecimento entre nós. E, assim, antes

prefiro evocar o roto, pobre, mendigo que, na beira da estrada,

olha com olhar majestático os automóveis que passam e deixou em

mim a firmeza de uma certeza exangue: nada mais pode ser igual.

Por isso, hipoteticamente, pensando,

e na minha mente clareando,

vejo aqui um sinal - cada um segue na vida

a sua Estrela singela. Hoje, a minha enriquecida,

com os encontros desta vida.







segunda-feira, 29 de agosto de 2011



Al gusto


Reta e derivação.

Geometria sólida e angulosa.

Que cais, de onde partem navios?

Sobre o saber, que saber há?

Que mestrado, sem palavras, ensina a natureza do que é silencioso?

domingo, 28 de agosto de 2011


Mural


Falar das coisas do mundo é tão difícil.

Às vezes, na minha loucura suave, acredito

que a minha televisão transmite imagens num

circuito fechado apenas para me fazer crer que

o absurdo varre as fronteiras da Terra. Mas, afinal,

a loucura é real e não existe só dentro de mim. A cada

notícia interrogo-me onde está a sanidade e o equilíbrio

na multidão dos homens. Mais perto, no dia a dia do quotidiano,

as marcas visíveis deste desacerto humano correm em mim e nos outros

nas mais simples ações da vida, que vão desde a inércia paralisante

à mesquinhez da inveja sentida e à deslealdade, não raro associada

ao desejo de supremacia e poder sobre os outros.

Por tudo isto, como Penélope, encanto o fio do tecido,

e refaço e desfaço o novelo comprido - loucamente, sei,

é somente um absurdo - mas como esperar

pelo concerto meu e do mundo?

sábado, 27 de agosto de 2011



Os Dias


Quando os dias evocam dias

e o mergulho na torrente

é frio - chega súbita

uma palavra: que aquece,

que acarinha, que abraça.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011



Desafio


As novas regras da ortografia, em Portugal, serão, a partir

de hoje, um desafio para mim. Depois de décadas a escrever

e a olhar cada palavra na sua inteireza ortográfica, tenho

agora de recriar um novo olhar e de buscar nas novas formas

talvez outras e novas qualidades. Entendo que a língua é

um organismo vivo e, como tal, sujeito à transformação e à

mudança - por isso, não me espanta que as palavras se

transfigurem. Contudo, no caso presente, tenho sérias dúvidas

que as atualizações estabelecidas mais não correspondam senão

que a interesses dos grandes grupos económicos que são as editoras

de além e aquém-mar. A história da língua o julgará. A mim

compete-me apenas seguir a norma linguística: é o que farei;

mas não sem antes lançar um último olhar sentido a cada

palavra dos livros da minha biblioteca, agora, transformada

em artefacto de fundo histórico documental. Por isso, nos

últimos dias, em cada livro que folheio anoto mentalmente

a nova grafia das palavras - é uma despedida; é uma reviravolta

no tempo: e estranhamente, ou não, vejo-me projetada para

um futuro que não devia estar a viver. Mas é assim, hoje, a Morte

já não aguarda por nós quando a revolução singra nos Tempos.



quinta-feira, 25 de agosto de 2011



Meditare


Não raro sucede-me ceder a um impulso

e comprar uma extravagância. É isto o que a

sociedade espera que eu faça - vender, comprar, consumir.

E, justamente, nesses momentos, algo dentro de mim atinge uma

plenitude. Talvez seja esta uma forma modernizada de meditação.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011



Cadeira de Baloiço


Baloiçando, rodando,

se move o eixo e a Terra;

e o Sol - tão estático -

cada dia - noite a noite -

tudo encerra.


Por isso, aqui, nesta beira,

num alpendre imaginário,

de uma casa sonhada e erigida,

escrevo sentada na cadeira

como num mar ao contrário.


Mas procuro o Sol... onde está?

Também não vejo a estrela da manhã...

Tudo se desfoca,

neste movimento - momento a momento -

da Terra num céu tão sedento!


Só a maravilha é real,

de cada vez que baloiça

a Terra no Céu; e a minha cadeira,

suspensa no chão,

me leva na imaginação...







terça-feira, 23 de agosto de 2011



Sob o signo do espelho


Durante anos, guardei um espelho. Nele,

observei o rosto de menina-adolescente e terei visto,

nesse longe passado, um sonho apenas feliz.

Depois, justamente, porque a fugacidade esteve tão presente

na realidade possível,

guardei o espelho na garagem e aí ficou quase

esquecido, quase perdido - a moldura em branco-pérola

tornou-se azulada, embora o espelho permanecesse imóvel e intacto.

Resolvi, entretanto, deitá-lo fora. Entregá-lo a outra sorte

e a outros rostos e isto porque, numa loja, encontrei

resplandecentes um cento de espelhos brilhantes. E, então, pensei

que este rosto de mulher-adulta precisa de um outro espelho,

um espelho tão mágico que anuncie

que a verdade de cada sonho

corre sempre como um rio.





segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Carrossel


Tantas vezes, antes de começar a trabalhar,

vou adiando, outra coisa qualquer criando,

divagando ou entretendo as horas com um passeio

ou um café... Aparentemente, nada estou fazendo,

assim como vivendo, letargicamente derivando.

Mas esta não é uma verdade

objectiva. De facto, é muitas vezes neste enleio que

surge a ideia perfeita para o trabalho, para a aula,

para a comida - e, embora o tempo siga correndo, e

eu não pique o cartão do emprego, é nestas horas tão

paradas que se fixa o rumo da vida.

domingo, 21 de agosto de 2011



d de desenho


É só uma letra: d ... e, no entanto,

com ela inicia-se a grafia da palavra: desenho.

Por isso, inscrevo também uma só letra: V ...; e espero

por ti no centro do nevoeiro.

Foi um fim de tarde de escrita - não mais do que o desenho

de palavras -, mas talvez na forma gráfica

esteja contido todo o sentido

e a forma-pensamento seja afinal real.

Tão real como, agora, docemente, do lado da serra,

a neblina baça, que se espalha em todo o redor,

tão baça e tão densa que apetece nela esculpir

cada uma das palavras desenhadas.

sábado, 20 de agosto de 2011



Memento


Sinal de que estamos vivos é a nossa capacidade

de nos lembrarmos - de desfiarmos o fio, às vezes,

ténue das recordações e de nos deixarmos levar pela

memória de cada fragmento de coisa ou de um único espaço.

Numa linha escrita existe esta mesma singularidade:

por isso há palavras que tanto nos dizem,

quando lidas com o Coração.

Então a recordação é viva e a memória é dinâmica,

nada se perde, tudo se transforma... quando no hoje,

agora presente, se abraça firme a realidade.

E, assim, neste dia, em Évora,

cada objecto que toquei pôde ser despejado,

porque a qualidade que o sustinha permanecerá no centro de mim,

como memento feliz... lembrando que cada pedra do Templo

perdeu já a sua história, porque ninguém de Diana tem

memória.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011



Etiquetas


Etiquetamos as pessoas e o mundo, cada

coisa. É este um exercício da mente.

Quase nunca a real qualidade está presente,

nesta etiqueta somente.

Mas o contrário - conhecer e não etiquetar -

é tão trabalhoso e custoso, que mais vale etiquetar:

um clique mental

sentencia; e o tempo que sobra permite

o entretém de cada dia.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011



Vermelho


Amarelo, Violeta...

Podia encher uma paleta de mil e uma cores,

mas de nada serviria: o logro é o engano de cada dia;

e já nem sei se uma cor quero escolher.

Por isso, hoje fui apenas caminhante por sobre a relva

por debaixo das palmeiras, à vista do mar ao largo. E, nesta

caminhada, pousei o amplo bordão, como quem espera e aguarda

por si mesmo no vão da estrada.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011



Beiral


No meu beiral, não há uma cornucópia de flores,

nem pássaros simples de mil cores,

nem uma serenata de despedida. Não há coisas reais

com vida, porque no tecido urbano só cotejam os vapores.

Contudo, não deixa de ser vibrante,

e o meu beiral deslumbrante, quando rego com o regador

aquela estrela no céu, que à noitinha, quando entardece,

desponta logo no breu.

E tudo isto pensei, quando à janela assomei e vi

por entre as coisas metálicas

que as crianças já quase não brincam

na praça deste lugar - só pode haver uma razão:

não há beirais luzidios

com cigarras e com grilos

lembrando o estio do Verão;

em vez disso, tudo é electrónico

instantâneo e mecânico

como um monólogo de actor

que, no palco, sem saber,

repetisse o «ser ou não ser».

terça-feira, 16 de agosto de 2011



Corre, corre...


...a voar - é um papel que vejo passar.

E voa ligeiro, tem cores, é festivo,

mas deve anunciar que o Verão é cativo.


Da minha janela, num quinto andar,

sabendo do Verão preso no ar,

esquecido das festas nos lugarejos,

digo adeus ao papel e aos simples festejos.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011



Vislumbre


Adraga, a praia, o mar.

Densamente a neblina coroa o céu e a crista das ondas,

e tudo no espaço estremece, neste contínuo movimento

do mar a correr.

Então sonho, enquanto a F. percorre a areia molhada, sonho

que a passagem no gretado rochedo está submersa no fundo das

águas e que há um guardião que vela um segredo. Mas o segredo é tão

simples, quase volátil no fundo da mente, que a todos é franqueada

a passagem, como se apenas se navegasse de margem para margem.

domingo, 14 de agosto de 2011



Silly Season


No dia, escurece e ilumina-se a razão.

Nada que não seja próprio de gente - mesmo

em meio da multidão. O escuro que anoitece,

no dia, não pode, contudo, prevalecer,

se o milagre

de encher de nada as mãos for firme exercício do saber.

E, então, como desfecho do dia,

em azulejo, minúsculo painel,

corre, afinal,

em dúzia, o número perfeito,

que, tal como a luz, se guarda no peito.

sábado, 13 de agosto de 2011



Volver


A roseira, o limoeiro, as figueiras e

tantos os vasos com flores... tudo arrancado,

morto, despejado. É este um fim afinal natural.

Tudo na vida tem um tempo fadado e a roseira bela

viu o termo anunciado, quando no calendário já não

havia o tempo da flor. Mas agora brotará um morangueiro

e talvez uma romãzeira e cada bago e cada fruto darão no

vermelho da cor um belo mote com amor.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011



Miragem


É um sopro... é uma descida...

são, no mar e na areia,

apenas sonhos da vida...


E como guardião um anjo,

tão terno e pequenino,

que embalado em cada tarde

mais parece um deus menino.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011



Jade Imperial


Recordo, com alguma frequência, a conhecida

história do amigo que escreve na areia e na pedra

sobre os factos da vida que lhe sucedem. De igual modo,

também eu prefiro a escrita na areia das tantas mil coisas

que se repetem... e isso, porque entendo que, tal como o monge

que sempre salva o escorpião que sempre o pica, também a natureza

de cada um tende ou para a areia ou para a pedra.

A pedra de jade imperial, que hoje comprei, lança-me, contudo, um

novo desafio; embora, no fundo, eu saiba que, na lonjura

dos tempos, também ela não será mais do que areia perfeita.



quarta-feira, 10 de agosto de 2011



Vaga de Calor


De algum modo, ainda no presente actual,

pesa, na avaliação e no julgamento dos outros,

a cor da pele. É extraordinário como

o feito da segregação e da escravatura, assente na pretensa

superioridade de uns sobre outros, ainda movimenta

padrões de pensamento. Isto incendeia a confrontação

desde o momento em que cada ser adquire a consciência de si

a partir da cor da sua pele. Não importa que haja leis

que não discriminem, pois no dia-a-dia a sociedade o faz.

E, na maior parte das vezes, basta um simples comentário,

até mesmo num supermercado,

que já é uma insinuação, por exemplo, «os do 2.º andar»,

«os do bairro», «os da rua», «os»,

indiciando que qualquer fonte do desassossego ou da perturbação,

no perfeito, harmónico e equilibradíssimo lugar,

só pode ter sido provocada por aqueles. E, justamente,

aqueles comportam-se, quase sempre, ao nível do que poderíamos chamar

as expectativas pré-concebidas. Por isso, não deixa de ser

curioso que a menina mais simpática e educada do meu prédio,

de trancinhas rematadas por missangas coloridas,

tenha chegado de Londres, no Domingo passado. Segurando

a porta, para que eu entrasse, sorriu-me largamente,

pois há meses que não nos víamos; e, hoje, penso que

a vaga de calor desta semana deve ser porque há um incêndio

em cada ser, que não nos deixa adormecer.

terça-feira, 9 de agosto de 2011



Dos deuses, a morada...


...é imperfeita. Afinal, no Olimpo dos Céus,

não há tranquilidade nem sossego, pois a cada

eterno momento, na sombra ou no sol, apenas em glória

se vive.


E, nesta constatação, minha alma búdhica ou não

recusa tão grande cansaço; e, ligeira, imperfeita,

passageira, apenas quer, em cada lugar, em cada espaço,

a descoberta da vida: a chegada e a partida.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011




O Sol e a Lua


Disse a Lua ao Sol,

em que brilho tão intenso

vives mergulhado...

Disse o Sol à Lua,

é sempre um brilho novo

que em ti está espelhado...

E, de mão dada, muito devagarinho,

o Sol e a Lua, do alto do céu,

embalaram em silêncio

todo o que nasceu.

domingo, 7 de agosto de 2011

Outros Lugares


Seria deveras simples solucionar a actual situação económica

mundial - sendo a moeda, em papel, em plástico, e

os títulos de futuros garantidos, a medida da vida de toda

e qualquer nação do mundo, fabricar-se-iam mais moedas,

hipoteticamente até sem as duas faces.

A moeda, então, cunho da felicidade do homem, permitiria

que não apenas um fosse dono de uma equipa de futebol internacional,

ou que não apenas um doasse, num gesto de filantropia, uma fortuna a causas

humanitárias mundiais.

Inundado de moedas, o mundo ficaria talvez ingovernável, é certo,

mas não muito mais para além do que se vai passando na actualidade

presente...

Enquanto esta distopia não acontece, aguardamos,

serenamente dormindo, pela abertura

da bolsa de Tóquio... que outros lugares há? que não-lugares existem?

sábado, 6 de agosto de 2011

Neblina


A lembrar um início de Outono suave,

acordo envolta numa neblina que, sem o oiro,

oculta, na obscuridade do brilho branco,

todas as formas.

E penso - quem desenhará no nevoeiro

o Padrão dos Descobrimentos,

não o do passado, imortalizado em Belém,

mas o Padrão do presente a haver,

que a Tradição anuncia?

Talvez por não o saber, no dia em que almocei

a caldeirada junto ao Tejo, ao meu lado, o Padrão

antigo pareceu-me apenas uma grande

pedra esculpida, morta e sem vida.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Brave...


Surpreendeu-me, há dias, um conceito de família

que vi no Facebook. Mas não é de admirar, porque,

também aí, me surpreende o conceito de amigo.

E talvez que, neste virar de página, de milénio,

o mundo ocidental conduza uma deriva assente na

afirmação egóica do indivíduo sobranceira face a qualquer

outro valor de existência. Assim, família e amigos

são uma vertente da rede social que faculta estruturas

que permitem a construção de um eu, paradigmaticamente

copiado e imitado de entre os múltiplos modelos

que as revistas de sociedade oferecem para entreter o quotidiano

da vida. E como que naturalmente, cada um à sua escala desenha, no presente,

o recorte das relações humanas,

tipificando o mundo e aquilo que daí advém.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Soberana


Do cimo das copas das árvores,

desce um hausto de luz tão momentâneo

que se apaga assim que o céu se ensombra...

tal como na vida também há sempre, no orvalho

da manhã, um gotejar de oiro que brilha

tão perto, que sei, que, se a minha mão estendesse

e o cimo das árvores ao vento, na sombra, não estremecesse,

poderia, da minha janela, tocar o longínquo horizonte.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

As Aparências


Hoje, em Lisboa,

no Rato, iam, nos carros,

tão atarefados os ministros que o trânsito

parou. Parece até bem. Quem ministra precisa

de uma faixa de trânsito aberta e de uma recta direcção,

não vá o exigível desenho perfeito dos números e o apagamento

com borracha das necessárias anotações a lápis sair errado sem perdão.

Por isso, nestas aparências ligeiras, parece-me antes melhor

o procedimento que depois observei: com desvelo

alguém foi cobrir a gaiola dos periquitos,

já que ao sol do meio-dia

até as aprisionadas avezinhas precisam de

uma justa governação.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Ela canta...


No Centro Comercial Colombo, pelas 10 horas

da manhã, ao meu lado ela canta...

Trauteia muito baixo, quase em surdina, uma melodia,

e caminha, por entre os corredores das lojas, como

se estivesse em plena festa ou arraial, a viver numa

animação divertida. Tão próxima, e tão ao meu lado,

é impossível não ouvir a melodia que, percebo, é uma

música ali mesmo inventada e construída: uma sequência

melódica harmónica, quase festiva. E, nisto, penso quão

diferentes uma da outra nós somos! O meu cérebro que

densamente detalha e analisa e o cérebro dela que

musifica. Perante uma realidade tão a mesma e tão,

mesmo, atroz e sem graça - um passeio num

Shopping numa manhã de Domingo - eu e ela agimos

profundamente tão de modo diverso. Ela, alegremente,

caminhando, com uma música a povoar-lhe a cabeça; eu

seriamente pensando: como é possível trautear

sem sentir o mundo a girar?

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

À chuva...


Primeiro de Agosto, primeiro de

Inverno,

diz o povo com acerto;

pois esta chuva e

este vento, assim em breu,

são um grande desacerto.

domingo, 31 de julho de 2011

Nanopartículas


Os milagres da sobrevivência, no mundo ocidental,

estão, cada vez mais, concentrados nas

nanopartículas. É espantoso

como o infinitamente pequeno pode contribuir,

e contribui, para o prolongamento da vida,

quando o organismo do indivíduo, por qualquer

razão, deixa de funcionar perfeitamente.

Mas estes milagres impensáveis há anos atrás

são também consequentes de novas necessidades,

que se impõem, ante um modo de vida actual que

padroniza hábitos de consumo, nomeadamente alimentares,

que em muito antecipam o desequilíbrio e

a doença. Contudo, genericamente falando, observa-se

que é mais barato comprar um medicamento para regular

níveis de gordura no organismo do que, diariamente,

fazer uma dieta saudável e equilibrada. Entre a conta

da farmácia e a conta do supermercado pesa-se uma escolha.

Entre um bem alimentar normalizado, fertilizado, criado

de forma massiva, manipulado e um produzido de forma

natural não há escolha, porque o segundo é praticamente

inexistente.

Observo, então, que aparentemente o futuro do homem ocidental

estás nas mãos de uma quase invisibilidade

sintética - criada e manipulada por indústrias poderosas -;

e, neste ponto, estes demiurgos do presente

serão talvez seres de alma vendida, que, sem pensarem,

procuram o elixir da longa vida.

sábado, 30 de julho de 2011

Cinéma


O acento não é engano. A palavra do título está mesmo

inscrita em francês. Apeteceu-me. Fica com outra melodia

e qualquer falante de português perceberá. Às vezes é assim,

na procura das palavras, surge um apontamento ou uma inscrição

numa outra língua e só nela é que, o que se pretende dizer, passa

a fazer sentido. Também é assim com as ideias: no desfiar do pensamento,

surgem umas e são eliminadas outras, mas há, necessariamente, um fluir.

E este fluir é à imagem de um filme equivalente - primeiro,

gravamos as imagens, depois, seleccionamos e montamos

a sequência, que terá sentido. Contudo, na mente,

o processo, embora, certamente técnico, não

é consciente, senão a partir do ponto

em que, quase como espectador, quem escreve assiste ao desenrolar

da longa ou curta metragem ante os seus olhos.

E, nisto, a escrita tal como o cinema são extraordinários,

permitem a efabulação dos mistérios da natureza humana.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Viaduto


O antúrio, habituado à incidente claridade

densa da sombra, resistirá, quando transportado

para o ar livre e o sol? Todos os dias, ultimamente,

penso nisto. E é trabalhosa esta reflexão.

Tão trabalhosa que deixei de reflectir sobre qualquer

outro assunto ou tema. Talvez que, afinal de contas,

também apenas isto importe aos grandes do mundo: saber qual o destino

das plantas - que tão imóveis e acomodadas -

nem dão trabalho

no alcatrão da estrada.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Fuso Horário


Para onde vai o Tempo? Para onde escorre?

Porque há sempre um dos lados do planeta dormindo?

Porque muda a Hora no Inverno e no Verão?

Porque não medimos o Tempo só com relógios de areia,

vendo escoar cada grão como um tic-tac imóvel?


Apenas as escalas dos aviões, nos aeroportos, de todo o mundo,

vencem este desconcerto dos milésimos de segundos.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Aroma de café


Vivemos tempos em que a imprevisibilidade

é a nota dominante do nosso quotidiano. Como

será a situação social, económica ou política

daqui a um ano, daqui a seis meses, na próxima

semana? Não se sabe. E, no entanto, a maioria de nós

vive absorta a esta fragilidade absoluta do dia-a-dia.

Exemplo disso está patente numa ida

a uma loja de venda de cápsulas de café da Nespresso:

o cerimonial de circunstância no atendimento a cada

cliente, por parte dos colaboradores da loja, faz-nos

pensar que atingimos os picos extraordinários

de algum estatuto social ou humano,

traduzível numa afectação de cortesia

em que tudo é representação. E é desse mesmo teatro que se alimenta,

na vida, a crise económica e política, as estruturas de poder, e até as

relações humanas. Tudo é raro, extraordinário e imprevisível,

mas continuamo-nos a comportar como actores em palco,

representando um certo, mesmo frágil, papel, numa

opereta em que, como os colaboradores da Nespresso,

não nos rimos e como que levamos a sério

o cerimonial de afectação. Tudo é de plástico, neste

momento. Na próxima ida à loja da Nespresso,

irei exigir a reutilização do saco e não a sua reciclagem.

Talvez, aí, então, perante um facto inusitado,

eu chegue à fala com um outro ser humano.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Abóbora-Carneira


De facto, por estes dias,

para completar o poema de Cesário,

só faltavam

as duas frugais abóboras-carneiras...

e ei-las, as minhas, que chegaram a minha casa:

vermelhas, fartas, enormes,

como sustentando em vitalidade e força

as gentes todas do mundo.

E não houve mais que saber... das abóboras-carneiras

à vista de todos

como é natural

fez-se um festim

entre amigas:

e a mesa farta alimentou

cada ser que por aqui passou...

Não houve quem não gostasse

deste alimento da terra,

que, sem taxa nem comércio,

partido e dividido,

cozinhado e preparado,

relembrou a cada um o valor

de cada... lívido cobre.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Sempre Imutável Desafio


Cada tarefa, em cada momento, deve ser um desafio

que se enfrenta como que renovado. Nada, como muito bem sei,

é permanente: nem a inteligência, nem a força, nem

a capacidade, nem a beleza, nem a vida. Sabendo isto, o homem

só pode humildemente ser. Encontrar o caminho para a Índia

acontece apenas uma vez... mas em cada outra viagem

a atitude deve ser igual à da primeira: e nisto

não pode nunca haver glória firme e alcançada,

pois na natureza frágil do homem

está a desdita

concertada.

domingo, 24 de julho de 2011

Rumar


Que outrora longe é, hoje, tão presente

que anula a distância, silenciosamente?

Será a foto que o O. me deu ontem?

Serão os ínvios acontecimentos do mundo,

tão longe e tão perto? Oslo, Líbia, Somália...

Será a quietude do bairro, adormecido ao sol,

neste Domingo na manhã sem varinas nem pregões?

Tudo isso e o mar... Tudo isso e a ausência do vento,

que agora se transformou em brisa suave...

E, assim, à bolina, sigo o caminho neste vasto oceano

que oculta, no eterno presente, as asperezas da vida.

sábado, 23 de julho de 2011

Em Ogígia, a paz


Estranhamente, só há perfeição,

quando, perfeitamente, desaparece

na totalidade, em cada um, a consciência dela.

Enquanto, na ordem das coisas, houver

a consciência do juízo

do muito bom e do excelente,

estaremos no rol superficial da acção

que compara

e avalia ou auto-avalia.

Se tudo isso desaparecesse, em cada um,

ficaria apenas o Ser

e, no movimento do mundo,

nada duraria senão um segundo.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

A Última Nau



A última nau navega para Além.

Quem a sustém? Quem a firma e quem

a move, se no mar breve se envolve

no nevoeiro que nasce do sonho primeiro?

Pouco importa... pelo menos, as asas

do saco em renda de croché foram cosidas

e robustas carregam as coisas queridas.

E, para além disto, o que mais há então?

A fome, a miséria, a escravidão... e o cansaço.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Diálogo na noite



Há, na noite, vozes

que se encontram,

desafiando o despertar

do dia.

E, nesse declive nocturno,

sonha o silêncio

como se cada um

apenas em si habitasse.

Por isso, agora, cada som,

uma água que escorre,

desperta o que

jamais morre:

a eterna flor do coração

que te ofereço em meditação.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Ditos em aguarelas


A apropriação que faço do título representa

a apropriação que fiz das ideias... apenas isso

sucedeu hoje na aula. E foi tudo tão suave, tão calmo,

tão fluente... como um mil estivesse presente...

Foi, talvez, a última aula do ano, tão estranhamente

em Julho dentro. Foi assim como uma despedida, um adeus destes que foram

os primeiros da multidão da minha vida.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Pedra Amassada


Há, em Portugal, lugares, aldeias ou vilas,

com nomes tão inusitados como criativos. Pedra

Amassada, na Ericeira, é um deles.

E, na chegada ao local, deparámo-nos com vales

e serras aonde o vento agreste, vindo do mar,

faz balançar toda a natureza num movimento enérgico

e poderoso de força. Fomos, com majestade, recebidas

por um gato - que breve, num cabriolar, logo desapareceu.

Poderia ter sido um tigre. Tão distantes da civilização nos

encontrávamos!

Mas da pedra amassada não vi qualquer sinal,

a não ser nos brincos de safira brilhantes que a E. ofereceu,

sinalizando nessa oferta um agradecimento,

de todas nós, ao gentil gesto da Luz,

que nos cedeu a casa.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A cada dia


dá Deus um novo dia.

É bonita esta frase;

sobretudo,

porque a quem hoje a ouvi dizer

tem uma pobre

mente que não lê nem tão pouco arde.

domingo, 17 de julho de 2011

The red badge of courage


Nos desafios da vida, quem merecidamente

recebe a medalha? Não sei. Do que conheço, a nossa bravura

não obedece senão às circunstâncias do momento,

em que, por qualquer razão, não conseguimos ser

cobardes. A força que encontro em mim e nos outros

é circunstancial: é uma quase impossível cobardia.

Digamos que a Vida não nos dá margem para essa alternativa.

Mas, no entanto, também há aqueles que fogem, ou que fugiram.

Recriminamos? Entregamos uma medalha? Não sei.

E, neste momento, em que reúno cada peça de ouro

e prata, interrogo-me sobre o Destino.

O que fazer? O acto heróico do despojamento e da morte?

O acto cobarde da preservação e da lembrança?

Em qual destes está a medalha espelhada?

sábado, 16 de julho de 2011

Percursos



Ontem, trilhos e margens, no Picoas Plaza.

Um encontro da lusofonia, abrilhantado pelo melodioso timbre

brasileiro de Laura Cavalcante, e com a presença dos guineenses, Odete Semedo

e Tony Tcheka, e do cabo-verdiano, Joaquim Arena, escritores.

E, neste entender de fala uns com outros se expressou

de modo extraordinário o sentido da universalidade portuguesa

no mundo. É raro e invulgar que alguém que expressa o seu sentimento

de amor à pátria possa ser completamente entendido por outrem de

nacionalidade diferente. Mas é o que connosco (povos da lusofonia)

acontece. Por isso, os nossos grandes poetas são transversais a todos

nós e até na riqueza do crioulo há uma ponte que

liga as margens da língua portuguesa na descoberta de novos trilhos.

Nota final: o tempo de duração da mesa redonda, sabiamente gerido.

Nem de mais nem de menos. O tempo exacto para conhecermos os

escritores e a sua poética. E aqui, como sempre, funcionam duas

vozes: a do homem e a da escrita. Às vezes, dá-se a feliz coincidência

de ambos serem excepcionais.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Álbum de Fotografias


Estão soltas... completamente soltas...

como se tivessem vida, e correm pelas minhas mãos

e mergulham no meu olhar que vê. Estas fotografias

a preto e branco e sépia levavam-me a um longe

tão longe que nem sei definir. E ali estão

o avô, a avó, o bisavô, a bisavó, os pais,

outra gente que não conheço, mas que é do meu sangue,

e eu própria, a branco e sépia também.

Colhi este tesouro há um ano atrás e preservo-o

talvez com o ensejo de o deixar em herança

a outros, que de igual modo olhem com uns idênticos olhos

a inscrição de vida que aí está presente. Por isso,

hoje, a tomatada com ovos, na qual demolharei o pão

fresco e branco, será o almoço perfeito para quem

partiu de um longe tão longe e, agora,

neste presente, procura reconstruir o puzzle do tempo

que não é senão uma miragem vaga e vazia de todo. Ao O. entreguei a foto

perfeita da avó, tão jovem, tão moça, e, quando

recuperada, remoçará no tempo

e ficará um instante,

apenas e tão só,

na eterna perfeição

das coisas inamovíveis.