Fevereiro


quando tem mais um dia

é pura alegria... e assim, sem razão

nem suspeita, a gente

permanece

mais tempo no assombro

do momento.

Contra a corrente


Sobranceira, na colina oposta às paredes do prédio

da minha casa, uma singela árvore

se descobre. Não fosse a descoberta rara

num renque de edificações citadinas, poderia passar

desapercebida; mas assim, não. Assim, esta única

e quase centenária irrompe

para o Céu,

num aprumo de verticalidade superior.


Puderam os prédios também

vergar ramos

ao sabor da brisa que passa,

e o silêncio seria sempre rompido

pelo ladainhar das folhas

no influxo das estações.

O Homem Duplicado


Parecia uma serpentina humana, ontem, o desfile

de tanta gente igual. O brilho, o glamour, de ser escritor

condensado numa de quatrocentas páginas

de um rentável livro.


Doeu-me a cabeça de me rever(?)

entre tantos iguais de igual crença:

uma palavra mais

que fará diferença.

Mescla


de cimento e argamassa constrói.

E o edifício ergue-se firme e hirto no labirinto

de desgraçados rostos famintos.

Justiça ou indignação?

Parede a parede, mão a mão,

tudo no mundo é ilusão.

Numa Gruta, uma Fada


Dormita, num ângulo reto, na gruta,

a cadente Fada. Tem uma roca e um fuso

à beira, à sua guarda.

E, quando acorda, tece, tece lençóis de linho.

Puros como seda. Brancos sem desalinho.


Às donas que um Desejo lhe pedem,

oferece pano branco tecido,

para que escrevam com palavras

o que é apetecido.


Assim passa os dias, dormitando e tecendo

panos; longe

da guerra que mata, vive uma Fada numa gruta

sem sonhos nem desenganos.

Vaivém


Tanto o silêncio.

Tanta a metamorfose.

Tanto que me espanta!

E se o ontem irrompesse pela minha janela

como futuro longínquo a haver?

Seriam os caminhos jamais iguais?

Viagem


Ao Sul de um Oriente novo viajo

e perco o rasto dos que ficam dolentes

num mesmo lugar.

Máscara ou magia? A viagem é a eterna via.

Sonho


Recordo as vozes do sonho apontando

as espigas azuis. Quando acordei, procurei

pela casa um rasto dessa sedimentação anil.

Mas nada havia... o sonho fora apenas um ardil.

Ao fim da tarde


a aula segue na sua cadência

quase dormente, ignorando o movimento

dos gigantescos guindastes de ferro, que erguem

e sustêm no ar pedaços das entranhas dos escombros

do velho edifício ao lado.

Então, de súbito, ocorre-me uma ideia nova:

construir com as palavras gastas

um novo enredo de memória.

Logout


Voltarei um dia, sim, voltarei,

e trarei uma mão cheia de areia

para ofertar ao Rei.

O Rei sabe o Destino e o Caminho

certo, mas onde pára? onde é?

em que Ilha de Fortuna mora?


Que tão longe é agora!

Belo dia!


Sejam todos os dias para ti assim:

envoltos na magia, na magia do sol sem fim.

E nos lustros dos anos,

tenhas sempre igual fervor,

o fervor dos verdes anos

que te mova no amor.

Mergulho


no infinito - mais além, mais além

que a lonjura da jornada que me sustém.


Mais além mora onde alguém?

Mais além chora onde ninguém?


E nesta agramaticalidade do Longe,

o Infinito se demora. Hoje onde vive a Esperança

onde mora?

Através...


... do tátil écran de vidro

acontece um mágico segredo:

cada um que toca em si derrama

uma réstia de ausência de todo o medo.


Do mar ao fundo nada se diz - o tátil écran

sonha um mundo, um mundo novo de raiz.

Silêncio


Um caixão fechado,

sem choro ladaínhado,

e o arroz doce que me lembra

eternamente as tardes do verão na tua casa.

Onde estás hoje enfim?

Guardas memória de mim?

Não sei. O longe é tão longe quando se parte

desta vida!

Por isso, se entreabrisse a imensa porta

talvez num assombro te visse apenas em luz

iluminando a braseira que ao meu lado aquece

a minha sala, o  meu bairro, o Tejo,  o mundo.

Movente...


é a estrada que segue a gente.

Dia a dia, a jornada é apenas caminhada

sem que  meta ou destino

importem.

A exceção são as estrelas - luzeiros do Céu -

cuja rota é previsível

e o ponto no firmamento é para nós inamovível.

Logo à noite


à tardinha, relerei todas as páginas de história e tratados,

reis, rainhas, príncipes, guerreiros e conquistadores, e também,

navegadores, pela sorte bafejados.


Não lerei histórias de versos,

nem poesias fantásticas, pois aí

o guerreiro chora,

e há deuses a lembrar que na demora

também há mágoa, tristeza e Dor.


Lerei só tratados de ciência,

exatos, atómicos, gramaticais,

e abandonarei todos livros onde a vida dos homens,

ó, oh!, Dickens,

é sem razão dura e obstinada

como se se corresse apenas uma longa, longa, estrada.

Ditirambo


O sábio uso da língua e a propriedade vocabular

devem ser exigidos a todos quantos têm o papel oficial

de falar em público a toda uma nação. Quando um governante

quer qualificar o seu povo, deve conhecer-lhe a história

e a psicologia e deve, também, saber usar a língua.

Senão incorre na construção de um mero drama

em que as personae olham para si mesmas

como se fossem marionetadas.

Surge a presente reflexão a propósito da palavra piegas

usada pelo primeiro ministro do meu país

incitando as gentes; a ele respondo na minha

voz timbrada: já Hércules não somos.

Esfinge


Esfíngica interrogação dos tempos,

que caminho nos É dado?

E a silhueta de mulher pairando no vazio

responde só com o silêncio mais frio.

Folhetim


Exquisite magazin

é a vida a cada dia, quando oiço a telefonia

e sei do Mundo os estranhos eventos.


Mortes, massacres, e uma dívida que sobe,

pobres e mais pobres, miséria,

fome e desgraça.

É isto um Destino de raça?,

ou o caminhar de cada dia?.

Dias a dias


É inverno, é domingo.

Há morangos para a sobremesa.


E, do baú das lembranças, surge-me a primavera

bela a acenar-me pela janela.

Lisboa à noite


tem uma magia diferente,

sem a luz do quase entardecer,

move-se apenas na cor das gentes.

Se a Aurora...


Tão de alvorecer,

se vê o dia a nascer: e tão que nasce

perfeitamente é possível todo o impossível.


Mas, neste acordar

da Terra, o sonho tão breve

se encerra, pois que no percurso do dia

repete cada um só uma manhã vazia.

Phantasia


Sem a criação no gesto,

nada no Homem é completo.


Por isso, a ausência de fantasia

mergulha a alma numa estrada fria.

O oleiro


Escorrem, no barro, as mãos do oleiro

e, gira que gira, o barro mole

ganha uma forma

oca.


Também os pensamentos

giram na minha mente,

mas a mão que os molda

é, tantas vezes, cega e dolente.


Por isso, aquela peça que olho e vejo,

vidrada, com um brilho raro,

me lembra o oleiro

que pensa

que pensa com as suas mãos.