Vaga de Calor
De algum modo, ainda no presente actual,
pesa, na avaliação e no julgamento dos outros,
a cor da pele. É extraordinário como
o feito da segregação e da escravatura, assente na pretensa
superioridade de uns sobre outros, ainda movimenta
padrões de pensamento. Isto incendeia a confrontação
desde o momento em que cada ser adquire a consciência de si
a partir da cor da sua pele. Não importa que haja leis
que não discriminem, pois no dia-a-dia a sociedade o faz.
E, na maior parte das vezes, basta um simples comentário,
até mesmo num supermercado,
que já é uma insinuação, por exemplo, «os do 2.º andar»,
«os do bairro», «os da rua», «os»,
indiciando que qualquer fonte do desassossego ou da perturbação,
no perfeito, harmónico e equilibradíssimo lugar,
só pode ter sido provocada por aqueles. E, justamente,
aqueles comportam-se, quase sempre, ao nível do que poderíamos chamar
as expectativas pré-concebidas. Por isso, não deixa de ser
curioso que a menina mais simpática e educada do meu prédio,
de trancinhas rematadas por missangas coloridas,
tenha chegado de Londres, no Domingo passado. Segurando
a porta, para que eu entrasse, sorriu-me largamente,
pois há meses que não nos víamos; e, hoje, penso que
a vaga de calor desta semana deve ser porque há um incêndio
em cada ser, que não nos deixa adormecer.